por Erasmo Ruiz

 

A reunião transcorre um tanto tensa numa unidade básica de saúde. Já estamos próximos do almoço, a temperatura está em torno dos 34 graus, o calor do sol se transmite pelas telhas não permitindo as pessoas sentirem o frescor da sombra, os ventiladores trazem ao rosto um calor quase sufocante.

Mas o calor não é só climático. O grupo de trabalhadores discute a questão do acolhimento na unidade. Reportam que as situações tem sido tensas, que os usuários tem reclamado muito na ouvidoria da forma como tem sido atendidos, das filas, da falta recorrente de profissionais médicos, enfim, um serviço de saúde como outros tantos numa manhã no ápice do verão.

O discurso daqueles trabalhadores sinaliza para formas de autodefesa. Os usuários são percebidos como pessoas que a qualquer momento podem irromper em agressividade. Assim, se justificam as grades, as medidas de contenção, os policiais nas portas da unidade, os olhares cheios de receio. Pensa-se em fazer acolhimento apesar das grades e do medo. Durante duas horas, os trabalhadores relatam casos de agressividade, falam de suas ansiedades, falam de medidas repressivas...estão discutindo o acolhimento.

Tudo se encaminha para o encerramento quando alguém toma a palavra e fala o seguinte:

“Faz muito tempo que nos reunimos em roda para discutir os nossos problemas. Semana após semana a gente vai falando dos problemas com os gestores, da falta de recursos, da falta dos médicos, da agressividade dos usuários. Falamos o que pensamos e isso é muito bom. Mas, o que de fato está mudando? A impressão que eu tenho é só aparecemos aqui e entramos em roda para falar...falar....falar.... e nada muda!”

Vamos pensar nessa fala. Parece que ela não é isolada. Em muitos locais existe esse ruído. Em alguns serviços a idéia de fazer roda se confunde com reuniões cíclicas, espaços de conversa etc. Óbvio dizer que a roda não se resume a uma reunião informal (ou formal), muito menos é um local onde a gente chega para se jogar conversa fora. A roda de conversa, enquanto um método, é UMA DAS FORMAS para conpartilharmos experiências, olhares e possibilidades de mudança, espaço onde a co-gestão abandona o reduto do discurso e sinaliza sua concretude prática, espaço onde os trabalhadores podem, mesmo que a margem dos gestores, pressionarem de forma mais sutil ou dramática, para a realização de mudanças que permitam a produção da vida nos espaços de saúde.

Mas a roda pode se transformar no seu inverso na medida em que seja manejada de maneira inadequada ou, então, percebida como o MÉTODO ÚNICO de mudança. Estaríamos assim vivenciando o “FETICHE DA RODA”. A expressão “fetiche” permite muitos usos. A palavra deriva do francês “fetiche”, uma apropriação do português “feitiço”, que por sua vez deriva do latim “facticius” (“articificial”, "fictício"). Na sua origem, a palavra significa atribuir aos objetos poderes sobrenaturais, quase como se tivessem vida própria. O termo, inclusive, é apropriado pela psicologia designando situações onde os indivíduos desenvolvem fixações por objetos e/ou partes do corpo.

Talvez estejamos produzindo em alguns locais o fetiche da roda, como se o método proposto fosse uma panacéia que por si só apresentasse diante de nós todas as possibilidades de mudarmos a realidade. Assim, o dinamismo da roda, suas possibilidades e desdobramentos práticos, poderiam começar a funcionar apesar das pessoas que na verdade são os animadores da roda. A roda passa a ser prcebida como algo que gira por conta própria.

Qualquer mudança que instituímos nos processos de trabalho determinam mudanças não só na forma como trabalhamos, mas também das maneiras como pensamos o trabalho e, em muitas circunstâncias, a nossa própria vida.  Talvez o primeiro grande impacto da roda seja o vislumbre da possibilidade de mudarmos o trabalho e por decorrência a própria vida. Isso não é pouca coisa. Mas, infelizmente, é sempre um primeiro passo. O problema é confundir o vislumbre da mudança com a própria mudança. Talvez seja isso que alimente o desalento de algumas pessoas mergulhadas no equívoco do “fetiche da roda”, avaliarem que a mudança se tornou impossível na medida em que a roda não produziu na prática  a mudança necessária.

O método da roda é um dos métodos. A roda não gira por si mesma nem caminha sozinha para melhores serviços de saúde. Quem move a roda da vida e por conseguinte a roda da história são as pessoas. Neste sentido, sempre cabe estalecermos contratos, atribuição de tarefas, analisarmos as mudanças possíveis, sonhar com o “impossível”, enfim, a roda deve potencializar o que podemos fazer de fato e, quando dizemos “roda”, estamos na verdade dizendo que é você e seu coletivo que realizam as mudanças pactuadas, mesmo que elas não se visibilizem tão belas quanto as mudanças sonhadas.    O espaço da fala deve alimentar o movimento da ação. Neste sentido, a roda não se resume ao falar catártico mas também é espaço onde pactuamos o que faremos todos para superar o momento do mero expressar da frustração. VOCÊ É A RODA !

Link:Rede HumanizaSUS

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Comentário de Evaldo em 19 junho 2013 às 21:29

Texto discutido em Osasco, sobre o papel do apoiador institucional/facilitador. Interessante que a CRSCO e a STS Lapa/Pinheiros estão no mesmo processo.

O diálogo de uma roda de conversa tem que fazer da interação uma transformação de cada um de nós para que haja uma mudança no trabalho, na valorização das boas idéias para o coletivo, mais do que para o indivíduo.

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