Compartilho para uma leitura prazerosa, vale a pena... um texto maravilhoso! Os dados demográficos e epidemiológicos do Brasil apontam para uma transição demográfica clássica e uma transição epidemio…

Compartilho para uma leitura prazerosa, vale a pena... um texto maravilhoso!

Os dados demográficos e epidemiológicos do Brasil apontam para uma transição demográfica clássica e uma transição epidemiológica sui generis. A redução da mortalidade infantil e o aumento da esperança de vida, progressivamente, colocam o país muito próximo aos países desenvolvidos. Já não somos mais o país do futuro!  E, junto com esse avanço, surgem no cenário, índices crescentes de doenças crônicas não transmissíveis sabidamente onerosas em seu controle. Acompanhando nosso progresso econômico, observa-se um “boom” de agravos, com destaque para os acidentes causados por veículos automotores. Dado que nossa herança de desigualdade não se corrigiu pelo desenvolvimento da economia, são alarmantes os indicadores de todo tipo de violência. E tampouco a incidência de inúmeras doenças transmissíveis baixou aos níveis dos países desenvolvidos; basta observar a incidência de malária e dengue. Esse quadro sanitário exige a alocação de vultosas somas de recursos financeiros para prover cuidados para uma população de cerca de 200 milhões. Exige, também, a implementação de um sistema de saúde que considere, em todas as suas dimensões, a concepção da determinação social do processo saúde/doença, e que não se aliene em relação à inegável desigualdade social apresentada pelo país.

A despeito da enorme força da ideologia da medicalização em nossa sociedade e também da característica ainda hegemônica em nosso sistema – medicalizado e hospitalocêntrico –, cremos que um sistema de saúde para fazer frente às necessidades de nossa população deve contemplar programas e ações dos cinco campos clássicos: promoção da saúde, prevenção às doenças e agravos, proteção à saúde, recuperação e reabilitação.

De forma breve e resumida, compreendemos a promoção da saúde como um conjunto de intervenções de caráter intersetorial, com vistas ao incremento da qualidade de vida, o que pressupõe a implementação de políticas públicas voltadas a corrigir as intensas iniquidades ainda vigentes no país. Identificar os determinantes sociais do processo saúde/doença, mapear os riscos que afetam os vários grupos sociais e combater seus efeitos nocivos, identificar as vulnerabilidades presentes nos respectivos territórios de atuação deve ser um foco permanente dos programas de promoção da saúde. É imprescindível, ainda, que tais programas garantam a participação da comunidade em todas as suas etapas, desde a que identifica os problemas e os analisa para decidir sua classificação como prioridade, passando pelo planejamento e execução de estratégias de intervenção. Por último, as ações da promoção da saúde devem garantir graus crescentes de autonomia a todos os envolvidos.

Considerando o exposto no início, o quadro sanitário brasileiro pode ser relevantemente alterado com medidas efetivas de prevenção às doenças e aos agravos mais prevalentes. Epidemias como a de dengue podem ser reduzidas pela conscientização da população sobre a eliminação dos criadouros do vetor. Doenças crônicas não transmissíveis também podem ser reduzidas pela prevenção dos fatores de risco, em especial a dieta e o sedentarismo, associada à adesão aos fatores de proteção. Para que os programas de prevenção se tornem eficazes, torna-se necessário um forte empenho para o incremento de ações educativas que englobem os planos individual e coletivo. Ações que procuram manter ou tornar o ambiente saudável têm um cunho eminentemente educativo, devendo ser um processo em que as pessoas sejam consideradas sujeitos e protagonistas de seu próprio aprendizado.

O campo da proteção, como os demais, não prescinde de um intenso trabalho de conscientização. Se considerarmos, por exemplo, os acidentes causados por veículos automotores, pudemos observar em décadas recentes, o efeito positivo do uso do cinto de segurança. O mesmo, infelizmente, não ocorre com o uso do capacete pelos usuários de motocicletas, veículo que passa por verdadeira explosão no interior do país, substituindo animais para locomoção. Quanto à imunização, o Brasil se tornou um modelo para o mundo, apesar de suas dimensões continentais e da imensidão de suas áreas de florestas.

Como uma das consequências da desigualdade social e das vulnerabilidades (social, institucional e individual), que se espalham por toda parte, até mesmo em territórios regionais mais desenvolvidos, temos um contingente de pessoas acometidas por inúmeras doenças e vítimas de agravos sequelantes, para as quais há que se organizar um eficiente  e eficaz  campo de recuperação, associado ao campo da reabilitação.

Na década de 1980, o clamor social pela redemocratização do país atingia seu auge. Nesse contexto, o Movimento da Reforma Sanitária se aliava aos que combatiam a ditadura e propugnava por um Sistema de Saúde de caráter universal, contra qualquer gênero de discriminação ou preconceito, que considerasse a saúde como um direito de todos e um dever do Estado. Esse princípio consolidou-se na histórica VIII Conferência nacional de Saúde, em 1986, sendo inscrita em nossa Constituição de 1988 e, a seguir, na Lei Orgânica de Saúde, em 1990. Apesar de inúmeras dificuldades, principalmente de ordem econômica e financeira, a manutenção desse princípio é a garantia de respeito à democracia como um valor maior de uma nação.

Embora na Lei Orgânica se mencione a idéia de igualdade, o princípio da equidade surge com mais ênfase apenas na Norma Operacional Básica 96.  Dada a patente desigualdade social, tratar de forma desigual os desiguais, priorizando os mais necessitados, passa a ser uma tarefa importante do Sistema Único de Saúde (SUS). Trata-se, então, de localizar em cada território de atuação do sistema, os grupos mais vulneráveis e dar a eles uma atenção especial, diminuindo as iniquidades que, historicamente, os atingem.

O terceiro princípio, talvez o que esteja em maior evidência no momento, é a integralidade. São múltiplas e diversas as facetas que compreendem tal princípio. Inicialmente, contempla a idéia de que as pessoas que acessam o sistema devem ser tratadas e consideradas como sujeitos, afastando definitivamente a prática iníqua de vê-los como meros objetos. Ampliando essa visão, assumir, em toda e qualquer instância do sistema, que elas são sujeitos protegidos por direitos e são os verdadeiros mantenedores do sistema. O combate à notória reatividade do sistema, representada por um acordar tardio somente após o mal se instalar, desconsiderando a determinação social do processo saúde/doença, é outra tarefa que se torna imperiosa.  Dessa prática reativa decorre em grande monta, a deplorável fragmentação do sistema. Ele somente será integral quando desenvolver ações dos cinco campos comentados anteriormente. Entendemos que a implementação das Redes de Atenção à Saúde (RAS) e o estabelecimento de Linhas ou Redes de Cuidado não podem restringir-se aos campos da Recuperação e da Reabilitação. É inconcebível uma Linha de Cuidado para Doenças Crônicas Não Transmissíveis que não inclua ações de Promoção e Prevenção.  Hoje, percebe-se que as RAS privilegiam ações de Recuperação, em geral pressionadas pela demanda em detrimento da necessidade. E, no enfrentamento dessa demanda exagerada, não conseguem livrar-se do mal da fragmentação. A comunicação e o fluxo entre pontos e unidades das redes são deficientes, com prejuízo para seus usuários. Isso dificulta muito a consecução de um cuidado integral para quem deve acessar tais redes. Em muitos casos, a oferta de determinado serviço necessário para o cuidado integral não contempla as necessidades, fato que paralisa o processo inteiro. Por último, é fundamental que se elimine a prática de fragmentar o próprio sujeito, desconsiderando seu caráter de ser integral e valorizando apenas seus órgãos em falência. Não se pode raciocinar sobre o que fazer com um fígado doente, mas, ao contrário, pensar-se sobre como cuidar de um indivíduo cujo fígado apresenta transtorno. Além do fígado, é claro, ele tem uma vida, tem uma família, faz parte de um grupo social, tem um papel na sociedade. A garantia desse tipo de integralidade não é tarefa fácil nos dias atuais, mas não pode deixar de ser perseguida se não quiser assistir ao fracasso de todas as demais tarefas.

Apesar de inegáveis avanços do SUS nesses vinte e quatro anos, é necessário que se busquem meios para garantir a execução de propostas que aproximem, cada vez mais, o que já foi normatizado e legalizado de suas práticas, para que as necessidades da população possam ser atendidas. É neste contexto que entendemos essa proposta de implantação das chamadas UBS Integrais (UBS-I) no âmbito do SUS da cidade de São Paulo. Entendemos essa proposta como um antídoto aos dois males que afetam o SUS, isto é, a reatividade e a fragmentação.  Para combater a reatividade, a UBS-I deve implementar um efetivo e eficaz programa de Vigilância em Saúde, que deve ser o cerne da Atenção Básica. É ela que vai tornar a UBS-I proativa, antecipando-se ao advento das doenças e agravos, mediante o mapeamento dos riscos e das vulnerabilidades, propiciando que se desenvolvam programas e ações para eliminar os riscos ou diminuir seus efeitos negativos sobre indivíduos ou grupos, bem como efetive intervenções de natureza intersetorial para reduzir as vulnerabilidades. Esta prática é parte da tarefa intransferível da UBS-I, que é fazer o levantamento das necessidades de saúde de seu território, compartilhando a prática com a sociedade local organizada, promovendo um ajuste entre tais necessidades e as demandas da comunidade.

Uma análise, mesmo que superficial, da organização atual da Vigilância em Saúde revela que ela não consegue os resultados que o sistema exige dela. Raramente ela se mostra proativa, respondendo, quase sempre, a denúncias, ou esperando notificações de doenças. E sua insistente fragmentação em Vigilância Epidemiológica, Vigilância Sanitária, Vigilância Ambiental reforçam a ideia daquele mal de que falamos anteriormente. E esse mal se torna ainda mais nocivo quando se observa o distanciamento entre essas vigilâncias e a Atenção Básica, embora se ocupem de problemas prevalentes num mesmo território. Cremos que a implantação da UBS-I é uma oportunidade ímpar para se inovar na forma de organização da Vigilância em Saúde, a começar pela incorporação dos recém-formados Técnicos em Vigilância em Saúde aos novos quadros dessas unidades.

            Para que se consiga maior eficácia da Vigilância em Saúde, é necessário que se incorpore nas ações de saúde a proposta da Educação Popular de Paulo Freire, sabidamente uma forma eficaz de incrementar a autonomia das pessoas, levando-as a  assumirem a parcela de responsabilidade que lhes cabe sobre a sua saúde e sobre a saúde de sua comunidade.

            Ampliando a análise sobre a fragmentação do sistema, é fácil constatar a quase ausência das ações de promoção e prevenção, fato que, por si só, já comprova a existência dessa fragmentação.  A UBS-I deve desenvolver programas bem estruturados de promoção da saúde, com vistas ao incremento da qualidade de vida dos cidadãos por cuja saúde ela é responsável.  É claro que o setor saúde, isoladamente, não tem a força necessária para isso; mas a UBS-I deve mobilizar os diversos setores sociais do território para, em conjunto, elaborar as estratégias de intervenção, sempre com a participação da comunidade, que deve ser considerada o verdadeiro sujeito e comandante do processo. Somente assim se consegue gerar graus crescentes de autonomia para indivíduos e grupos sociais dessa comunidade.

            O diagnóstico dos problemas que afetam o território, em especial os determinantes sociais do processo saúde-doença, os riscos e as vulnerabilidades, deve ser realizado pelos técnicos da UBS-I, pelos setores sociais organizados e pela comunidade. Uma das diversas técnicas de grande eficácia para esta tarefa é a denominada “Oficina do Futuro”. Nesta técnica, após adequado levantamento dos problemas, estes são analisados segundo sua magnitude, relevância e vulnerabilidade a fim de se estabelecerem as prioridades. Para essas prioridades são elaboradas as estratégias de intervenção.

            Faz parte do diagnóstico a identificação das doenças e agravos mais prevalentes no território, para os quais a UBS-I deve elaborar um amplo programa de prevenção. Tomemos, para uma exemplificação, duas doenças mais prevalentes em muitos de nossos territórios - a hipertensão arterial e o diabetes. O risco intermediário clássico para ambas é a obesidade, que se manifesta desde a infância. Um programa de prevenção centrado na mudança de hábitos dietéticos e na atividade física torna-se imperioso. A vigilância no combate da obesidade deve ser permanente para todos que gravitam na órbita da UBS-I, sem distinção de gênero, de idade ou qualquer outra variável.  É necessário recordar que ações de prevenção são exigidas em qualquer fase do processo saúde-doença. Devemos prevenir o advento do pé diabético nos indivíduos acometidos pela doença e em fase de controle. Há dados oficiais apontando que, na Estratégia Saúde da Família, “apenas 30% das pessoas com diabetes tiveram seus pés examinados, 46% dos pacientes com pressão alta realizaram cardiograma” (Facchini).  A UBS-I deve incorporar as ações de prevenção em toda e qualquer linha de cuidado que venha a  desenvolver em seu âmbito de atuação. Mais uma vez fica patente a obrigatoriedade de um efetivo programa de Vigilância em Saúde para que ela cumpra a sua missão e se torne um paradigma dentro da Atenção Básica. Isso fica mais relevante, se imaginarmos que a UBS-I incluirá em sua cobertura os trabalhadores e os estudantes do território.

            O SUS tem um mérito reconhecido internacionalmente em relação à imunização, procedimento símbolo do campo da proteção. Neste sentido, a UBS-I deve ter como meta a cobertura vacinal de 100%, de acordo com o Programa Nacional de Imunização. No caso particular da Coordenadoria  Regional de Saúde Oeste, com um significativo contingente de idosos, a UBS-I deve ampliar os esforços para conseguir a cobertura preconizada para esses cidadãos, superando qualquer tipo de obstáculo que se apresente. A cobertura deficiente revela entre outros motivos, a falta de um bom trabalho de conscientização da população alvo. Mais uma vez, surge no cenário a prática da educação em saúde, componente imprescindível em todo e qualquer processo de trabalho que venha a ser efetivado pela UBS-I, o que pressupõe a necessidade de implementação de um amplo programa de Educação Permanente para todos os trabalhadores da  UBS-I, ampliado para os participantes do controle social, organizados na forma institucional de Conselhos Gestores ou outras que venham a ser propostas.  Esse trabalho de conscientização é a mola mestra para outras intervenções no campo da proteção, a saber, o uso de preservativos nas relações sexuais, com vistas à redução da incidência das DST, e o uso de capacetes para motociclistas. Em ambos os casos, almeja-se o mesmo sucesso obtido quanto ao uso de cinto-de-segurança, um item que se converteu em algo natural e quase um reflexo. Dada a expansão da indústria da construção civil em nossa cidade, é tarefa obrigatória da Vigilância em Saúde da UBS-I o controle sobre o emprego de EPI entre os trabalhadores desse setor.

            Dado que já existe, no imaginário popular, um modelo de UBS tradicionalmente compreendida como o lócus das coisas simples, cabe à UBS-I quebrar tal paradigma e mostrar para a população que, de fato, veio para fazer a diferença. É a chance de demonstrar aquele potencial que os defensores do SUS sempre apontaram, principalmente a capacidade de a atenção básica resolver 85% dos problemas de saúde do território. Considerando que a UBS atual tem se caracterizado pelo predomínio das ações de recuperação, a UBS-I tem a obrigação de dar a máxima eficácia a essas ações. Talvez seja esse o primeiro desafio par a conquistar a confiança da população, aspecto imprescindível para tornar eficazes as ações dos demais campos.

            Esse desafio se inicia com a implementação de um amplo programa de diagnóstico precoce das doenças mais prevalentes, em especial aquelas de caráter crônico e de longos períodos de latência como o diabetes, a hipertensão arterial e as neoplasias. É necessário criar um protocolo para garantir a todos os usuários um procedimento de check-up adaptado à sua realidade sócio demográfica provendo assim maior eficácia ao capo da recuperação. Espera-se com isso, diagnosticar-se precocemente os usuários diabéticos e hipertensos, bem como, pela realização da citologia oncótica e da mamografia, anteciparem-se na batalha contra o câncer uterino e o câncer da mama. Outra prática que a UBS-I deve adotar é o rastreamento dessas doenças entre os moradores, os viventes e os passantes de seu território, nessa ordem de prioridade, fazendo uso da tipologia dos riscos, ou seja, os riscos imutáveis, como a idade e a hereditariedade; os intermediários, como obesidade para todas essas doenças, ou hipertensão para o diabetes e este para a hipertensão; e os mutáveis, como a  dieta, o sedentarismo, o estresse, o tabagismo, o alcoolismo.

            Para que a UBS-I possa, de fato, representar essa mudança de paradigma, ela precisa desenvolver uma prática de acolhimento que se configure como momento privilegiado de seu vinculo com a comunidade. Essa prática deve ocorrer tanto intra como extra-muros. A UBS-I deve estabelecer um amplo programa de comunicação com a comunidade, de caráter permanente, empregando toda diversidade de técnicas disponíveis, bem como toda diversidade de mídias. É claro que os trabalhadores da UBS-I e os membros do segmento “usuários” do Conselho gestor são os agentes privilegiados desse programa. Eles precisam ser capacitados para discorrer sobre a UBS-I em qualquer situação, dialogando com usuários e população em geral sobre todos os aspectos referentes a ela, dirimindo todas as dúvidas ou encaminhando o interlocutor para o ponto certo com presteza e segurança. A prática de supervisão permanente desse programa é imprescindível para o seu sucesso. Como um bom aliado para sua eficácia, o programa de comunicação pode prover ferramentas como folhetos, folders, vídeos, bem como oficinas para realização junto aos grupos sociais organizados (em particular os formadores de opinião).

             O acolhimento daqueles que acessam a UBS-I é um ponto central para a quebra de paradigma. É necessário lembrar que a maioria dos usuários apresenta certo grau de sofrimento, seja pelo mal-estar ou pela dor causada pelo quadro mórbido que o acomete, seja pela insegurança e incerteza diante do futuro. Aqui é fundamental que se faça a distinção entre a objetividade da doença e a subjetividade do adoecer. Obviamente, nem todos reagem de forma idêntica a um quadro gripal, a despeito da semelhança dos sintomas. Acolhê-los de modo a mitigar seu sofrimento é a primeira providência da UBS-I. No momento em que ele se sentir acolhido, iniciado um vínculo de empatia, o trabalhador da UBS-I deve introduzir as noções sobre o papel da UBS-I no conjunto da Rede de Atenção à Saúde (RAS), bem como noções preliminares sobre as Linhas de Cuidado que estão à sua disposição na unidade e na rede, a depender do diagnóstico de seu quadro de saúde.  Essas noções serão complementadas, em ocasiões futuras, uma vez realizado tal diagnóstico. A meta a ser perseguida é a compreensão do usuário de que a integralidade do cuidado a que tem direito e de que necessita será garantida no conjunto dos diversos pontos e unidades da RAS, já que a UBS-I é apenas um nó dessa rede, que, evidentemente, deve contemplar sua mobilidade e sua comodidade. Muitas vezes, a linha de cuidado genericamente construída não dá conta da realidade individual; nesse caso, no acolhimento, já se deve dar início ao projeto terapêutico singular, ampliando-se a cobertura da RAS pela incorporação das redes de solidariedade comunitárias e familiares.

             Duas questões fortemente ligadas ao estabelecimento de vínculo entre a UBS-I e os usuários devem ser contempladas com um olhar especial: o horário de funcionamento e o quadro de pessoal. Dada a diversidade da dinâmica de cada território, não pode haver um engessamento na questão do horário; há de haver uma compatibilização entre a proposta dos técnicos e as aspirações da comunidade, já que não se trata de uma mera ampliação de horário para dar conta da demanda. Em relação ao quadro de pessoal, cada um dos territórios exige um olhar diferenciado para se garantir a presença de profissionais compatíveis com as necessidades e com o incremento do rendimento e da resolutividade. É fato que muitos dos procedimentos que hoje são realizados por unidades especializadas podem ser contemplados pela programação da UBS-I, em especial aquelas ligadas ao campo da reabilitação.

            Outro ponto importante para a quebra do paradigma da Atenção Básica é a incorporação, pela UBS-I, de atendimento das queixas eventuais, hoje majoritariamente realizadas pela AMA. É uma queixa antiga dos usuários das UBS a ausência dessa prática, o que marca mais um aspecto da já discutida fragmentação do sistema. Usuários portadores de doenças crônicas como diabetes e hipertensão são acompanhados em sua condição crônica; quando de uma manifestação aguda desse quadro, devem acessar a AMA ou o PS, apesar de não se tratar de um episódio revestido de gravidade. Essa realidade exerce um papel negativo na manutenção do vínculo e coloca a Atenção Básica da UBS em um lugar secundário na linha de cuidado. Entendemos que a UBS-I deva organizar-se de forma a garantir esses atendimentos de urgência e emergência a todos os usuários reais e potenciais (moradores e viventes), tanto para os já cadastrados quanto para os que estão utilizando esse momento como porta de entrada para o sistema.  Mais uma vez, faz-se necessária uma boa prática do acolhimento para se entender o papel desse cuidado eventual no conjunto do cuidado integral. Não se deve permitir que a UBS-I seja tomada de assalto pela demanda por urgências e emergências dos passantes do território, descaracterizando-a. Entre as várias medidas para conter esse processo de desvirtuamento, é necessário, como parte do acolhimento, a implementação da classificação de riscos, acompanhada de um relacionamento sem entraves com o SAMU e a UPA de referência, unidades essenciais da RAS para tal tipo de cuidado, cuja integração deve ser  uma meta permanentemente perseguida.

            Como um dos componentes vitais do campo da recuperação, o diagnóstico do processo mórbido merece uma especial atenção como peça indispensável no projeto de quebra de paradigma. É notório que este quesito tem sido um monopólio do profissional médico. Este é o primeiro aspecto a ser combatido, uma vez que muitas particularidades do processo mórbido podem ser captadas por qualquer profissional envolvido no cuidado. Por uma questão cultural, muitos indivíduos se sentem mais a vontade em comunicar-se com profissionais menos “elitistas” do que os médicos. Estes, por sua vez, têm dificuldade de comunicação com pessoas das classes subalternas, cuja variedade linguística muitas vezes soa como um idioma estranho. Acresce-se ao fator comunicação a presença de uma postura decorrente da ideologia classista muito forte entre os profissionais médicos.  A UBS-I tem que concentrar-se  no esforço de desconstruir o imaginário segundo o qual o médico é naturalmente o líder de qualquer equipe. Essa hegemonia precisa ser contestada e substituída pela participação efetiva do médico como membro de uma equipe, dotado de conhecimentos específicos, é certo, mas conhecimentos que devem ser partilhados com toda a equipe para o sucesso do cuidado prestado ao usuário da UBS-I. E, mutatis mutandis, o médico deve aprender com os demais as especificidades do trabalho de cada um deles, no mesmo sentido. Na equipe, não deve haver maiores, nem melhores, mas uma participação de todos para gerar sinergia, a verdadeira essência do trabalho em equipe.

            Na parte do diagnóstico que é atributo do profissional médico, percebe-se, no modelo atual, um grande distanciamento em relação à complexidade tecnológica intelectual em favor da complexidade tecnológica material. O raciocínio clínico, que contempla a narrativa do usuário sobre seu processo mórbido, os diversos tipos de antecedentes, sua inserção no processo produtivo, o exame físico do usuário, culminando com as hipóteses diagnósticas, quase não existe mais. O apelo e o apego aos exames laboratoriais são a base do trabalho médico. Muitas vezes, tais exames são solicitados à revelia de qualquer raciocínio clínico embasado na realidade do quadro apresentado pelo usuário, gerando uma indesejável pletora no sistema e consumindo preciosos recursos financeiros. A UBS-I não pode furtar-se de desenvolver um trabalho de equipe de modo a corrigir tais desvios, inclusive gerando ou utilizando protocolos construídos com outro olhar.

            Assumindo-se que a sociedade brasileira passou e ainda passa por um intenso processo de medicalização, e também que nosso sistema de atenção à saúde é medicalizado e hospitalocêntrico, há um apelo disseminado amplamente para o uso de tecnologias materiais. Um médico que resolve um problema sem solicitar um exame sofisticado não tem o mesmo charme que outro que o faz. A tão comum prática do consumismo impregna também o campo da saúde. A ressonância magnética torna-se objeto de desejo de consumo, tal qual um carro ou um televisor de última geração.  Não há, é claro, como dissociar esse desejo da lógica íntima do capitalismo. A tarefa de opor-se a essa prática consumista, embora prenhe de conflitos, deve fazer parte das propostas da UBS-I. Trata-se de um trabalho educativo, com vistas à conscientização, na esteira do trabalho a ser desenvolvido no campo da promoção da saúde, em particular na questão do consumo consciente, etapa indispensável do trabalho voltado ao adequado destino de resíduos. A ressonância magnética tem seu mérito e deve ser indicada e estar disponível sempre que se justificar seu uso. Sua introdução na linha de cuidado deve ser norteada exclusivamente pelo benefício ao usuário.

            Quando se aborda a questão do diagnóstico, já vem à tona a prática da regulação, hoje objeto de enorme potencial de dissabor. Dada a forma como, historicamente, foi-se construindo o SUS, como reflexo da própria forma de organização da sociedade, há quase uma impossibilidade de satisfação da demanda por procedimentos especializados. A fábrica de doentes continua produzindo a todo vapor; as formas de abordar os processos mórbidos são influenciadas fortemente pela medicalização; a tendência ao consumismo é crescente; o apego à especialização é progressivamente estimulado; isso tudo leva à pletora presenciada neste momento. AUBS-I deve balizar sua prática em oposição  a essas tendências . Neste sentido, sua regulação deve fazer parte orgânica do todo, em permanente comunicação com o conjunto de seus trabalhadores e com os demais pontos da RAS, influenciando o próprio planejamento dos pontos que darão suporte a suas necessidades. Tomemos como exemplo o controle do câncer de mama, no item específico do diagnóstico precoce mediante a mamografia. Pela análise demográfica de moradores e viventes do território e pela aplicação do protocolo atual, calcula-se o número de mamografias necessárias ao longo do ano. Esse número é levado para a RAS, que planejará a provisão dessas mamografias, de forma a garantir 100% da cobertura. Em havendo um caso específico que aponta para um risco já patente, cujo diagnóstico já se faz urgente, a regulação deve ter liberdade e a capacidade de prover tal procedimento imediatamente.

Uma vez confirmado o diagnóstico, instaura-se uma nova etapa no acolhimento,  já que o usuário integrará uma nova linha de cuidado apropriada a sua realidade e deverá conhecer bem sua rede especifica, além de compreender que a base do cuidado continuará sendo a UBS-I. Há de se ter o empenho para impedir que uma unidade de maior densidade da rede passe a ter esse papel; isso demanda um processo de comunicação muito ágil e sem entraves entre todos os pontos da RAS.

            O próximo passo no campo da recuperação é o tratamento do problema diagnosticado. Cada caso, sem dúvida, requer um plano específico na estratégia de intervenção terapêutica, mas há um plano geral na linha de cuidado, em especial para as doenças mais prevalentes. Nessa linha de cuidado, a UBS-I deve incorporar às práticas habituais, as menos ortodoxas, como, por exemplo, a meditação na abordagem da hipertensão arterial.  No particular da intervenção medicamentosa, é necessário contemplar o fato de que o usuário da RAS acessa vários de seus pontos e, em mais de um deles, são prescritos medicamentos, propiciando certo descompasso, em virtude de não existir um prontuário eletrônico único. O risco de interações medicamentosas adversas é muito real e nem sempre o usuário sabe referir as prescrições que lhe foram feitas. Não se pode olvidar também que muitas drogas provocam reações adversas e/ou efeitos colaterais e que isso deve ser bem compreendido pelo usuário, o que requer muito empenho no processo de comunicação, respeitando as possíveis dificuldades do receptor e, em especial, utilizando um código compreensível. Embora a prescrição seja quase monopólio do médico, todos os membros da equipe com os quais os usuários da UBS-I  mantêm contato devem inteirar-se dela, bem como das propriedades positivas e negativas das drogas nela contidas, a fim de apoiar esse usuário em suas dificuldades.

            Em muitos casos, o tratamento indicado deve ser realizado em outra unidade da RAS, como por exemplo, o tratamento cirúrgico. Mais uma vez se impõe a participação de um ágil procedimento de regulação e um perfeito sistema de comunicação entre a UBS-I e a unidade que proverá o cuidado, como se fosse uma via de duas mãos, já que parte do seguimento pós-cirúrgico deve ser feito pela UBS-I.

            Dado que, por diversos fatores, nem sempre o tratamento se reveste de sucesso, uma parte dos usuários necessita de um conjunto de ações  de reabilitação, que podem ser desenvolvidas no interior da UBS-I, no domicílio do usuário ou em outra unidade, fazendo parte da Rede de Reabilitação. Trata-se de um esforço para reabilitar o usuário física, mental e socialmente. Mais do que nunca, dado o enorme sofrimento desses casos e do transtorno que provoca nas famílias, a UBS-I deve preparar-se para uma parte desse cuidado em seu componente mais básico e relacionar-se com  os demais pontos da rede para o que for mais específico, além de buscar um contato íntimo com as redes de solidariedade comunitárias e com outros setores sociais, públicos ou privados, em particular para garantir a mobilidade desses usuários e seus direitos como cidadãos.

Tendo em vista que a Estratégia Saúde da Família (ESF) tem sido considerada ao longo do tempo, uma proposta fundamental para a ordenação da Atenção Básica, sua interface com a UBS-I precisa ser analisada. É indiscutível  o fato de que a ESF gera um vínculo privilegiado entre as equipes de saúde e os usuários do sistema e esse tem sido o fator primordial para garantir os altos índices de aprovação do programa. São reconhecidos também seus méritos na redução do coeficiente de mortalidade infantil de inúmeros territórios. Apesar disso, no município de São Paulo, a ESF tem se afastado de várias de suas missões primitivas e se transformado, paulatinamente, em mais  uma das intervenções para dar maior rendimento às ações de recuperação. Muito pouco se observa no campo da promoção da saúde, resultando num crescente contingente de pessoas acometidas pelas DCNT e em números alarmantes de vítimas de toda sorte de agravos, em especial decorrentes de violência. A ESF não conseguiu efetivamente revestir-se do caráter intersetorial, enclausurando-se no interior do próprio campo da saúde. Dada a natureza multifatorial do processo saúde/doença e considerando sua determinação social, o setor saúde isoladamente, pouco pode fazer. A ESF, porém, não rompeu com essa solidão, fato que a impulsiona, cada vez mais, na direção do campo da  recuperação, em que a intersetorialidade parece ser menos imprescindível, visão que não consegue livrar-se da contaminação da ideologia da medicalização da sociedade.  Ao se pensar a ESF no âmbito da UBS-I, devem ser feitos todos os esforços para garantir que todos os setores organizados da sociedade local estejam envolvidos na proposta de atuação. Mais uma vez se faz necessária uma comunicação ampla e ágil com tais setores,  conclamando-os a participarem da elaboração de estratégias que aumentem a qualidade de vida do território. Essa é uma forma privilegiada de combater as vulnerabilidades e garantir melhores níveis de saúde. Há inúmeros exemplos sobre tal questão, destacando-se a geração de  empregos no próprio território e a ampliação da iluminação pública no combate à violência. O setor saúde deve assumir a responsabilidade de mobilizar os setores sociais organizados com vistas a conquistar essas melhorias, aproximando-se mais das causas e menos das consequências.   A ESF tem enorme potencial para isso e deve ser implementada na UBS-I.

             A promoção da saúde só se torna efetiva quando a comunidade se mobiliza e participa do processo inteiro, identificando os problemas do território, analisando-os para escolher as prioridades, cooperando na elaboração de estratégias de intervenção, em sua execução e em sua avaliação, assumindo o comando desse processo de transformação de sua realidade. Os ACSs, os TVSs e os APAs da UBS-I são dotados de um grande poder de mobilização  e empoderamento da comunidade e isso deve ser muito explorado por ela. Trata-se de garantir uma participação social para muito além do que o vital controle social do sistema. Este controle deve vir no bojo daquela participação. Uma ferramenta extremamente útil para o sucesso dessa empreitada é a realização das “Oficinas do Futuro” em todas as micro-áreas e, de forma ascendente, em todo o território. A perfeita combinação entre a intersetorialidade e a participação da comunidade é a chave do sucesso. Para completar o tripé que sustenta uma verdadeira promoção da saúde, é necessário que todas as etapas, todas as ações executadas sejam geradoras de graus crescentes  de autonomia. A comunidade deve ser estimulada para assumir as rédeas de sua própria vida. A ESF precisa libertar-se da tendência de atrelamento tão frequente no momento.  Estratégias grupais são muito positivas, mas não podem ficar dependentes da presença ou do comando do sistema. A UBS-I precisa mudar essa prática para que se configure como uma quebra de paradigma.

            Considerando-se o quadro sanitário atual, não há dúvidas, sobre a imprescindibilidade do campo da prevenção. A ESF da UBS-I poderá tornar-se um marco neste campo, se incorporar, sem ressalvas, o espírito da vigilância em saúde. A identificação dos fatores de risco para as doenças e agravos mais prevalentes e a implementação de ações para combatê-los são tarefas que se impõem.  Propostas para mudanças de hábitos e comportamentos devem ser estimuladas cotidianamente, em especial para garantir um ambiente e uma dieta saudáveis. Ações coletivas de combate ao sedentarismo, ao tabagismo e ao consumo abusivo de drogas psicoativas também devem fazer parte deste rol de propostas.

            Para aumentar o rendimento das ações de prevenção, a ESF da UBS-I deve estar preparada para implementar a Educação Popular como ferramenta de eleição. Ela tem demonstrado seu enorme poder no processo de conscientização.  Esse mesmo processo de conscientização é indispensável para que se obtenha sucesso no campo da proteção. A ESF da UBS-I deve garantir por intermédio dele, a mais ampla cobertura de vacinação dos moradores e viventes do território, bem como disseminar estratégias para aumentar o uso de preservativos e emprego de EPIs entre os trabalhadores do território.

            Por todos esses aspectos, cremos que a proposta de implantação das UBS Integrais retoma a trilha de defesa do SUS como política pública inclusiva, de enorme relevância para a sociedade brasileira quebrando o paradigma que se consolidou no imaginário de grande parte da população segundo o qual o SUS é um sistema pobre para pobres. A UBS-I surge para mostrar a complexidade do sistema, sua riqueza de concepção, bem como para confirmar a ousadia de concebê-lo como universal, isto é, para todos.

Texto escrito por um médico Sanitarista e doutorado em Saúde Pública... espero que tenham gostado. Eu amei! Se possível, comentem. Abç.

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Comentário de Evaldo em 31 agosto 2014 às 15:29
Oi Teresa. O texto é do professor Bedin? É muito bem escrito, com um encadeamento lógico das ideias e um diagnóstico brilhantes, embora seja difícil concluir que o "tratamento" seja uma "UBS Integral".
Para um texto na forma de comunicação rápida de um Blog, acho que ficou um pouco longo. Uma solução seria colocarmos subtítulos, para que o foco de cada interesse das pessoas seja destacado.
Acredito que, como exercício na nossa organização de redes e linhas de cuidados possa ser interessante discuti-lo na Oficina de segunda.
Em 2012 produzi um texto mais simples, defendendo a ideia do uso da internet para a organização da rede de atenção e da promoção da saúde. Não tem a complexidade deste texto, mas acho que a proposta de uso da internet pode ajudar a implementar muitas das concepções aqui colocadas. O link: http://promoversaude.ning.com/profiles/blogs/o-sus-e-a-internet-1
Até amanhã!

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