Uma das lições da pandemia: a ausência de Estado Social representa o genocídio dos mais pobres - Maria Maeno*

*Médica, pesquisadora – Saúde do Trabalhador


Neste 19 de março de 2020, temos no mundo 209.839 casos de Covid-19 confirmados, 8.778 mortes e 168 países atingidos (1).


O novo coronavírus, que causa a Covid-19, infecta sem causar
sintomas ou causa poucos sintomas na maioria das vezes, mas pode promover quadros clínicos graves e mortes, principalmente em quem tem mais de 55 anos de idade e doenças crônicas como asma, hipertensão arterial e diabetes.


No dia 26 de fevereiro deste ano, o primeiro caso foi
diagnosticado no Brasil. Era um homem que havia voltado da Itália e foi diagnosticado com coronavírus em hospital privado de alto padrão. A partir de então, não só, mas muitos famosos e pessoas com planos de saúde privados têm sido diagnosticados com a doença. São mais de 600 casos e 6 óbitos no país, segundo dados oficiais(2).


Medidas de prevenção têm sido divulgadas e uma desaceleração da circulação de pessoas e das atividades econômicas se instalou no país. Lavar as mãos e usar álcool gel com frequência, ficar a uma distância de um a dois metros de outra pessoa, praticar o isolamento social com trabalho à distância e o isolamento domiciliar, em caso de sintomas são possíveis entre um segmento reduzido da população e ações impossíveis de se cumprir para quem mora em cômodos apertados e superlotados, agora com crianças e adolescentes, que tiveram as aulas suspensas, e idosos.


Na cidade de São Paulo, campeã de casos diagnosticados, os trens, ônibus e metrô, embora com diminuição de passageiros das regiões centrais, trazem e levam pessoas que moram nas periferias e
trabalham nas casas (empregados domésticos, faxineiras, babás, cuidadoras, porteiros de prédios), como terceirizados de limpeza e segurança privada. Não foram dispensados de seu trabalho, e
poucos recebem orientação e aparatos de proteção, como álcool gel, que virou artigo de luxo.

Aos trabalhadores do mercado formal, que totalizam menos da metade da População Economicamente Ativa (PEA), antecipações de décimo-terceiro e de férias, redução de jornada e de salários e
antecipação de 25% de seguro-desemprego para os que tiverem salário reduzido e ganharem até 2 salários mínimos, duzentos reais para os autônomos são as principais medidas até o momento
anunciadas pelo governo federal, que além de insuficientes e algumas injustas, estão longe de serem efetivadas (3).


Há ainda os trabalhadores do mercado informal e os chamados empreendedores, dentre os quais vários uberizados, que só ganham quando trabalham e os desempregados, que fazem bico dia sim dia
não, que totalizam a maioria da PEA. A doença não atingiu ainda em sua plenitude as pessoas da base da pirâmide social e não restam dúvidas de que elas serão atingidas.


Neste contexto, gostaria de destacar dois aspectos no que tange à saúde e ao trabalho mais precarizado.


Um aspecto é o da urgência do mais amplo conjunto de medidas de proteção à saúde e a segurança dos trabalhadores e de suas famílias, para o enfrentamento da situação da pandemia, que não são absolutas, mas devem ter o sentido de diminuir as atividades de trabalho onde for possível e onde não for, oferecer as melhores condições de transporte e trabalho; manter os empregos, sem redução de salários; incentivar e abastecer os comércios locais; garantir segurança alimentar de forma organizada para as crianças e jovens dispensados das aulas; garantir transporte especial para os sintomáticos que necessitem de assistência à saúde; garantir assistência integral à saúde, com ampliação de pessoal capacitado pelo SUS e contratações emergenciais, com preparação de leitos hospitalares, incluindo os de terapia intensiva, a exemplo do que o governo da Bahia anunciou (4); providenciar hotel social para as estimadas 24 mil pessoas em situação de rua da cidade, para que tenham condições de higienização, alimentação e isolamento social; convocar o setor industrial para produzir, organizadamente, o que for
necessário para proteger a saúde e segurança das pessoas; injetar recursos para nossos pesquisadores na busca de vacina e medicamentos.


O outro aspecto é a vida pós-pandemia. O que seria a volta à normalidade?

Esse vírus tem nos dado uma aula planetária de que, a enorme desigualdade social põe em risco toda a humanidade.


O pensamento hegemônico atual é a de que a saúde das empresas deve estar à frente das vidas humanas, e isso é inaceitável.


Estamos tendo a oportunidade de comprovar que “sem SUS é a barbárie (5)”, com a ressalva de que ainda temos SUS, combalido e atacado, mas ainda presente. Tem sido possível vislumbrar o que seria o Brasil projetado pelo atual governo federal, sem SUS e sem Estado protetor das pessoas.


É preciso rechaçar, assim, a “normalidade” da vida anterior à pandemia, com uma luta ferrenha por mais Estado no sentido da diminuição da desigualdade social, que exige, para começar, a revogação da Emenda Constitucional 956 e a reformulação da Lei de Responsabilidade Fiscal, (7) que no seu artigo 9º, parágrafo 2º diz que “não serão objeto de limitação as despesas que constituam obrigações constitucionais e legais do ente, inclusive aquelas destinadas ao pagamento do serviço da dívida, e as ressalvadas pela lei de diretrizes orçamentárias,” em contraposição às limitações que
impõe ao Estado no tocante aos investimentos públicos na promoção de políticas sociais, conforme nos ensina o Professor de Economia Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, que afirma que estamos na
contramão dos demais países, nos quais “há um movimento de liberação da capacidade do Estado para agir, movimentar seus recursos, gastar para poder estimular a economia privada”(8).



1 Fonte: Organização Mundial da Saúde. Disponível em
https://experience.arcgis.com/experience/685d0ace521648f8a5beeeee1b... > acesso em 19/03/2020.
2 Ministério da Saúde atualiza a situação do coronavírus - 19.03.2020. Disponível em
http://www.youtube.com/watch?v=530nK1vKsIc > acesso em 19/03/2020.

3 Veja a Nota Técnica do Dieese – NT 223 de 17/03/2020. Disponível em
https://www.dieese.org.br/notatecnica/2020/notaTec223pacoteCoronavi...; acesso em 20/03/2020.

4 O Governo da Bahia anunciou que usará o Hospital Espanhol, privado e desativado há 5 anos, como hospital de campanha para os pacientes adoecidos pelo coronavírus. Disponível em
https://www.brasil247.com/regionais/nordeste/governo-da-bahia-encam... > acesso em 19/03/2020. 
5 Importantes sanitaristas, como Gonzalo Vecina e Gastão Wagner de Sousa Campos, têm feito essa contundente afirmação.
6 EC 95, que antes de ser aprovada era conhecida como PEC da Morte, congela os gastos públicos por 20 anos a partir de 2016. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc95... > acesso em 20/03/2020.

7 Clara Furukawa afirma que, atualmente, “não há limites para o pagamento dos juros relativos à dívida contraída pelo Estado perante as instituições financeiras privadas, em contrapartida, há várias limitações para a atuaçãodo Estado em promover ações públicas relativas à contratação de pessoal, havendo flagrante privilégio dos interesses das instituições privadas em detrimento dos direitos sociais coletivos.” Disponível em
https://clarafurukawa.jusbrasil.com.br/artigos/152104200/a-lei-de-r...; acesso em 19/03/2020.
8 Entrevista do Professor Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo à Radio Brasil Atual, em 28/03/2019. Disponível em https://www.redebrasilatual.com.br/economia/2019/03/na-contramao-do... > acesso em 19/03/2020.

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