Plataforma de Cooperação do SUS
Ao Excelentíssimo Dr. Luiz Carlos Zamarco, Secretário Municipal de Saúde de São Paulo, e às Organizações Sociais de Saúde (OSS) que atuam no município.
Nós, trabalhadores do SUS da cidade de São Paulo, através desta carta, nos manifestamos contra os indicadores de produção propostos na Portaria 333, uma vez que eles não consideram as necessidades singulares de cada território e se afastam dos princípios do SUS, confundindo quantidade com qualidade e reforçando a concepção de produção de saúde como mercadoria e não como um direito.
Entendemos que tais indicadores, além de fragilizarem o cuidado prestado pelos serviços, potencializam o adoecimento de trabalhadores que tiveram seus processos de trabalho, já precarizados, intensificados em decorrência da pandemia, diminuindo assim a sua resolubilidade e ferindo os princípios de integralidade, longitudinalidade do cuidado e equidade.
Assim, os indicadores de produção propostos:
NÃO facilitam o acesso;
NÃO melhoram a qualidade dos serviços e ações em saúde;
NÃO qualificam os processos de trabalho e práticas de gestão;
NÃO contribuem para a efetivação das diretrizes e objetivos do SUS;
NÃO foram pensados a partir das diretrizes e objetivos do SUS;
NÃO aferem a excelência de qualidade na prestação dos serviços de saúde.
Partindo do pressuposto de que a organização e participação política em todos os processos de elaboração e de formulação de políticas públicas é um direito dos trabalhadores da saúde e dos usuários dos serviços, enfatizamos que a forma de construção e aplicação das metas propostas pela Portaria 333
fere diretamente o controle social, a participação da população e a descentralização, princípios presentes no cerne da construção democrática que é - e deve continuar sendo - o SUS!
A confusão que se faz entre quantidade e qualidade demonstra o quanto a proposta dos indicadores de produção está descolada da prática cotidiana do trabalho em saúde em São Paulo e reflete a falta de transparência e diálogo com que a proposta foi pensada e implementada. Não é possível fazer gestão
de qualidade do SUS sem a participação direta dos trabalhadores e usuários que o constroem diariamente que, neste caso, foram os últimos a serem informados sobre como se daria a implementação da portaria, com informações desencontradas e falta de transparência em diversos níveis.
Nós, nas trincheiras cotidianas dos territórios, em conjunto com os usuários, sabemos que quantidade é diferente de qualidade, principalmente no que diz respeito à produção de cuidado em saúde. Compreendemos e identificamos diariamente as demandas territoriais e poderíamos ter contribuído na construção de parâmetros de avaliação e medidas para a melhoria da qualidade e efetividade das ações em saúde em cada região, caso tivéssemos sido consultados quanto às necessidades de cada território.
Sabemos que a complexidade dos adoecimentos, condicionantes e determinantes em saúde não podem ser abordados como uma linha de produção em larga escala, ainda mais em tempos de pandemia, somados ao aumento do desemprego, da pobreza e da violência, necessitando de
atendimentos e grupos com infraestrutura e tempos adequados, número de profissionais suficiente, tempo para reuniões de equipes, evoluções, reuniões intersetoriais e entre serviços de saúde, discussões de caso, planejamento e produção de relatórios, fatores que os indicadores da portaria não apenas não prevêem, como também sufocam dadas as quantidades pouco realistas de grupos e atendimento individuais preconizados.
Medidas reducionistas produzem monitoramentos ilógicos, obtusos e paradoxais, como reduzir a Saúde da Mulher ao acompanhamento de mulheres durante a gestação, desconsiderando questões de gênero e outros papeis e funções que as mulheres podem desempenhar ao longo da vida; ou quando reduzem a eficácia do acompanhamento de pessoas em situação de violência ao preenchimento correto de um questionário com finalidade estatística.
Esta definitivamente não é a produção de saúde que nos representa. Diversos conselhos profissionais da saúde, que tem por objetivo proteger e zelar pelo bem estar e acesso a saúde dos usuários em relação ao trabalho de cada categoria, já se manifestaram com indicadores de produção bastante diferentes e mais próximos à realidade do trabalho em saúde do SUS do que os propostos pela Portaria 333, como foi o caso do CFP (resolução 17/22) e do CREFITO-3, que tem discutido a questão com intensa participação dos profissionais da cidade.
Nos parece que esses conselhos têm reconhecido melhor do que a Secretaria que produção de cuidado se faz com número de profissionais condizente às necessidades da população, equipes completas, espaço físico e infraestrutura adequados, com tempo de atendimento para escuta e boa condução de cada caso e de cada grupo. De outra forma, pela maneira que os indicadores de produção da Portaria 333 se projetam, o processo, já largamente visto em qualquer equipamento de saúde paulistano de
desvalorização profissional, adoecimento, afastamento, burnout, demissões e alta rotatividade de profissionais do SUS, tende a se aprofundar, dificultando o cuidado continuado e diminuindo a qualidade do cuidado prestado à população.
Outrossim, sem condições adequadas para planejamento e reflexão sobre o trabalho e as estratégias de cuidado adotadas em cada caso nos serviços dos territórios, é impossível construir o acesso e cuidado em saúde garantidos em Constituição.
Entendemos que a estruturação de metas se faz necessária uma vez que o Estado, na figura do município de São Paulo, abre mão do controle e proposição de sua política de saúde, terceirizando-os às Organizações Sociais (OS) e por esse motivo tendo que propor estratégias de controle e garantia de
algum cuidado prestado. Contudo, esta condição não justifica a opção por um método que não considere as instâncias do controle social e que esteja pautado unicamente em dados quantitativos.
Não aceitamos que quem pague a conta por essa desresponsabilização do município sejam os usuários e os trabalhadores do SUS e por isso exigimos maior participação na formulação dessas propostas, com espaços reais e formais de discussão e de consulta, cabendo indicar que, hoje, trabalhadores e usuários encontram-se organizados para discutir, problematizar e responder às Portarias e Normas Técnicas que têm chegado aos serviços sem qualquer indício de construção democrática e sem a devida representatividade.
No mais, apesar dos indicadores absurdos de produtividade trazidos pela Portaria 333 e sobre os quais nos declaramos contrários, endossamos o posicionamento do documento no que tange à legitimação dos espaços de gestão participativa e de participação dos usuários como indicadores de qualidade dos serviços, bem como a garantia nos contratos de equipes suficientes e de estrutura adequada, entendendo serem iniciativas essenciais para o contínuo desenvolvimento do nosso Sistema Único de Saúde.
No entanto, não é possível encerrar esta carta sem expor o seguinte questionamento: como a mesma Portaria que reconhece a gestão participativa e o controle social como indicadores de qualidade de um serviço não se propõe a ouvir seus trabalhadores e usuários na proposição de um documento tão importante e que interfere diretamente na qualidade da assistência prestada?
Juntos, caminharemos na superação dessas e de outras contradições e na manutenção e construção do SUS que confiamos e defendemos.
São Paulo, 11 de agosto de 2022.
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