1) CONFERENCIA SÃO PAULO SUA - CONTRIBUIÇÃO PARA O DEBATE: SAÚDE – OS DESAFIOS PARA SÃO PAULO (5ª versão, 06/03/2020) - 1ªparte

O SUS do Brasil é o maior sistema público de saúde global, tendo como população sob seus cuidados 210 milhões de pessoas. Teve seus fundamentos construídos a partir de experiências municipais bem sucedidas, de movimentos populares de luta pela saúde e do combativo envolvimento de sanitaristas, nas décadas de 1970 e 1980, e suas diretrizes erigidas a partir da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, após a queda da ditadura em 1985. Foi precedido pela criação das ações integradas de saúde e do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS). Seu desenho institucional foi fruto de amplo processo de discussão das forças progressistas que compunham a Assembleia Nacional Constituinte, que resultou na inscrição de cinco artigos sobre Saúde na Constituição Federal (CF) de 1988, que preconiza Saúde como direito do cidadão e dever do Estado.

O SUS representou, provavelmente, a maior mudança estrutural no Estado brasileiro. Lembremos que durante todo período de vigência da ditadura estavam separados em ministérios as ações de prevenção, restritas a vacinas, controle de endemias, populações indígenas no Ministério da Saúde e as ações de atenção à saúde a cargo do INPS e depois INAMPS, vinculados ao Ministério da Previdência e Assistência Social, encarregado a nível nacional de atender as pessoas empregadas, através de sua rede própria e da rede privada conveniada, que constituía a maioria, cujas lembranças mais exuberantes nos remetem às seguidas fraudes nos faturamentos e no péssimo atendimento prestado. As secretarias municipais de saúde possuíam diminutas redes de atenção à saúde e assim como a dos estados, em maior volume, eram destinadas à puericultura, atendimento aos desempregados e indigentes, com as exceções de uns poucos governos municipais (nos anos 70 e 80 - Piracicaba, Penápolis, Montes Claros, Bauru, Diadema), cujas ousadias contribuíram para o desenho conceitual do SUS.

Ressalta-se que até a promulgação da CF de 1988 não existia direito social a saúde no Brasil, sendo que o acesso ao componente assistencial do Sistema de Saúde mantido pelo Estado somente era possibilitado aos assalariados urbanos dos mais diferentes ofícios e ocupações que se inseriam no setor formal do mercado de trabalho e suas famílias, aos quais era garantido o acesso a assistência através da previdência social, como mencionamos acima. Ou seja: uma grande parcela da população brasileira – que não se inseria no mercado formal de trabalho, não tinha renda para pagar por sua assistência à saúde ou não tinha nenhuma empresa ou instituição que lhe provesse cuidados de saúde – somente poderia ter acesso aos serviços prestados pelos estabelecimentos de saúde públicos da administração direta (Ministério da Saúde e secretarias estaduais e municipais de saúde) ou contar com a caridade provida pelos hospitais filantrópicos, como os das Santas Casas. E qual era a gravidade desta condição fática? Tanto os estabelecimentos de saúde públicos da administração direta quanto os hospitais filantrópicos, tinham papel residual na oferta de assistência no país e eram insuficientes para cobrir uma volumosa população de trabalhadores e trabalhadoras, e suas famílias, do setor informal do mercado de trabalho que vivia nas periferias das grandes regiões metropolitanas, nas pequenas cidades e nas regiões rurais.

Entretanto, várias razões contribuíram para o atraso de sua implementação plena: a frágil economia do fim do período ditatorial; o governo Collor; a difícil relação com o sistema privado de saúde a disputar recursos públicos (desonerações, dedução no IR) e a instituir padrões de procedimentos caros que exercem influência no sistema público; a disputa de profissionais, particularmente médicos, que trabalham no setor público e privado; e as dificuldades de construir relações e pactos necessários entre os entes federados, tendo em vista a diversidade entre Estados, Municípios e a União, e as diferentes prioridades políticas entre eles. Somam-se a isso as medidas de política econômica e fiscal, como a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e a EC 95. Num país com as desigualdades como as aqui existentes, a subordinação do atendimento da população, de suas necessidades básicas, ao controle financeiro, que privilegia o progressivo enriquecimento de poucos, do sistema financeiro cujos lucros aumentam a cada ano, com ou sem crise, com ou sem desemprego, o aumento a cada ano do clube de bilionários, restringir recursos para a população é inaceitável e deve ter no campo da saúde, em seus profissionais, por parte da população um duro combate para revogar esses instrumentos que atentam contra a vida.

As faculdades de medicina e demais áreas da saúde das universidades públicas e as privadas sem ou com fins lucrativos pouco contribuíram para a construção dos alicerces do SUS, sem a compreensão da sua função social de formadoras e fornecedoras de recursos humanos sintonizados com as necessidades da população e do sistema de saúde para atendê-la, O SUS. Ao contrário, mantiveram-se ilhadas, coniventes com parcela significativa dos interesses corporativistas principalmente dos médicos da carreira universitária, que progressivamente se dedicam mais às suas atividades no setor privado. Esses elementos, somados a outros, como a inexistência de carreiras e valorização dos profissionais do SUS, contribuíram para uma qualidade heterogênea da atenção prestada à população. Sem potencial para atrair significativos segmentos sociais, que aderem aos planos de saúde privados, na sua grande maioria, restritivos, fragmentados e carentes de qualidade; que prometem como atrativo terem maior rapidez e qualidade na realização de consultas, exames e atenção hospitalar e, na maioria das vezes, promessa não entregue. Salienta-se que um dos principais problemas para a efetivação do SUS tem sido o subfinanciamento crônico, principalmente da União e dos Estados, considerando que os municípios investem em Saúde muito mais do que o piso constitucional de 15% de receitas próprias.

São Paulo, capital, a maior cidade do país, vive uma situação peculiar entre as grandes cidades brasileiras. Depois de ter uma gestão com avanços na área da saúde, de 1983 a 1985 (Mario Covas), a gestão de saúde de 1986 a 1988 (Jânio Quadros) foi de retrocesso. A administração seguinte, de Luíza Erundina (1989-1992) promoveu importantes avanços na gestão e melhoria dos serviços, mas não conseguiu a municipalização de serviços, que continuaram sob gestão do Estado, particularmente em relação às Unidades Básicas de Saúde/UBS, que com o SUS deveriam passar para a esfera municipal. Seguiram-se as desastrosas administrações de Maluf (1993-1996) e Pitta (1997-2000) que com a criação do Plano de Atendimento à Saúde (PAS) operado pelas cooperativas médicas criadas, na contramão e fora do SUS, promoveram retrocessos significativos na área. Apenas em 2001, na gestão da prefeita Marta Suplicy (2001-2004) teve início à construção do SUS na cidade, com a extinção do PAS; a gestão plena dos recursos; a municipalização das UBS e dos primeiros Programas de Saúde da Família/PSF nas regiões da Vila Brasilândia e Sapopemba que estavam sob gestão do Estado; a instituição do Fundo Municipal de Saúde e a realização de Conferencias de Saúde, fortalecimento do Conselho Municipal de Saúde e elaboração do Plano Municipal de Saúde, em sintonia com as diretrizes e objetivos do SUS.

As gestões posteriores a 2004 tampouco conseguiram avanços significativos na saúde. Pelo contrário, as gestões seguintes (2005- 2012) trataram de reverter o processo de descentralização do planejamento e coordenação das ações no território, com extinção das coordenadorias de saúde que haviam sido criadas em cada uma das subprefeituras. Hoje os serviços de saúde ainda funcionam de forma fragmentada e sem coordenação efetiva. O modelo de gestão centrado na contratualização com diversas Organizações Sociais de Saúde/OSS cresceu vertiginosamente nos últimos 15 anos, e atualmente gerenciam UBS, CAPS, UPA, Hospitais, Ambulatórios de especialidades, entre outros. Cerca de 70% dos serviços de saúde do município de São Paulo são gerenciados por dezenas de OSS, que atuam, com frequência, sem coordenação e integração entre si, e sem uma gestão forte da Prefeitura, que acaba se limitando muitas vezes a monitorar o cumprimento de metas de produção.

A este quadro soma-se a crônica falta de médicos, especialmente nas áreas periféricas, situação que se agravou com extinção do Programa Mais Médicos criado no Governo da Presidenta Dilma Rousseff. O Programa Médicos pelo Brasil, criado pelo Governo Federal de Bolsonaro através de Medida Provisória, muda radicalmente os critérios de provimento de médicos para as UBS, e exclui principalmente as grandes cidades da Região Sudeste do Brasil, apesar de terem periferias carentes com unidade de saúde onde o provimento de profissionais também é muito difícil.

Destaca-se em São Paulo a redução progressiva das ações da Secretaria de Estado da Saúde (SES-SP), especialmente nas tarefas típicas como promoção, controle de riscos coletivos e de vigilância e referencia para ações de alta complexidade. Ao lado desta retração, chama atenção a falta de coordenação de ações regionais para auxiliar pequenos e médios municípios a organizarem planos de atenção regionais e a manutenção de serviços de saúde nas mãos da Administração Estadual, desarticulados dos planos de saúde municipais, aprovados em conferencias de saúde, obedecendo à lógica de uma operação política que busca manter reféns os prefeitos e secretários locais de saúde. A farsa das regiões metropolitanas organizadas pelos sucessivos governos do Estado atesta a incompetência, o descaso e o modus operandi do mesmo, com destaque para a inexistência de planos e ações estruturadas na área da saúde.

A situação atual do país, com o desaquecimento da economia a partir de 2015, a decorrente queda na arrecadação tributária nas cidades, nos estados e na União; os retrocessos no SUS com a limitação homicida imposta pela Emenda Constitucional - EC95 de 2017, que congela os gastos públicos federais em saúde por 20 anos (não ousaram fazer o mesmo com o pagamento de juros ao rentismo), e a descontinuidade nas gestões do sistema, vêm impondo um agravamento na prestação de serviços de atenção à saúde da população SUS dependente, com aumento da precarização dos serviços e impondo elevados gastos aos municípios. Dentro deste quadro, a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), que agrupa 39 municípios, com cerca de 21,5 milhões de habitantes, é um caso à parte, pois ao mesmo tempo em que concentra muitos dos melhores serviços de alta complexidade do país, também convive com dificuldades na atenção básica, ambulatorial, bem como a hospitalar, especialmente para suas populosas regiões periféricas.
Alguns dados gerais e de saúde no cenário brasileiro
Diversos estudos publicados nos últimos anos revelam avanços com a democratização do país, refletidos em indicadores econômicos, sociais e de saúde, bem como declínio preocupante com o ataque à democracia com o golpe consumado no início de 2016 e as consequências da retirada de direitos e recursos.
Dados que seguem permitem uma leitura do que ocorreu e vem ocorrendo no País.

Tabela 1. A democracia, Constituição, o SUS e os empregos fazem bem ao povo (Lancet 2019;394:345-56
1990 2000 2010 2015 2018
Pobreza extrema %* 21,6% 11,6% 4,7% 3,4% 6,5%¹
Pobreza %** 42% 26% 17,9 (2014) 21 (2017)
Índice de Gini 60,5 58,4 52,9 51,3 54,5
Gastos saúde/capita USD 535,1 614,5 931,6 984,9
*pessoas que vivem com menos de 1,9 dólar/dia; ** pessoas que vivem com menos de 5,5 dólares/dia (IBGE); ¹IBGE

Após 30 anos da Constituição e 25 anos após o inicio da implantação do SUS os reflexos nos indicadores de saúde são relevantes (Lancet 2019;394:345-56; Cad Saude Coletiva 2018;23:1737-50).
De 1990 a 2015:
• Redução de 67,7% na taxa de mortalidade de menores de 5 anos por 1000 nascidos vivos;
• Redução de 28,7% na taxa de mortalidade, por todas as causas, padronizada pela idade, em ambos os sexos;
• Redução de 47,1% na taxa de mortalidade por doenças transmissíveis maternas, neonatais e nutricionais;
• Redução em 25,3% da taxa de mortalidade por todas as causas de doenças não transmissíveis;
• Aumento da expectativa de vida ao nascer de 67,9 para 74,4 anos, dados para ambos os sexos;
• Aumento da Expectativa de vida saudável de 59,4 para 64,8 anos, dados para ambos os sexos.
Por outro lado é possível sentir o Impacto do desemprego e retirada de direitos com redução de serviços de saúde, como pode ser visto a seguir (Lancet Glob Health 2019; 7: e1575-83). Embora a série de dados conta com poucos anos para confirmar uma tendência, num país com grandes desigualdades estruturais (moradia, saúde, baixos salários) é previsível que ocorra uma rápida na piora da vida da população em curto espaço de tempo.
• Impacto na mortalidade na população com 15 anos ou mais de 2012 a 2017, em 5.565 municípios:
 Aumento de 8% (143,1 para 154,5/100 mil) na mortalidade;
 A cada aumento de 1% na taxa de desemprego esteve associado um aumento de 0,5 óbitos/100 mil por todas as causas de mortalidade;
 No período 31.415 óbitos em excesso estiveram associados ao desemprego;
 A elevação de óbitos associados ao desemprego foi significativa em homens, nos pardos e negros, na faixa etária entre 30-59 anos e, nos municípios com elevados gastos em saúde e assistência social não foram observados aumentos na mortalidade associada ao desemprego.
• Em 2018, o país tinha 13,5 milhões pessoas com renda mensal per capita inferior a R$ 228,00 (U$D1,9/dia), critério adotado pelo Banco Mundial para identificar a condição de extrema pobreza. Esse número é equivalente à população de Bolívia, Bélgica, Cuba, Grécia ou Portugal. Subiu de 3,4%, em 2015, para 6,5% em 2018.

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