São Paulo tem jeito: políticas de desenvolvimento - Ladislau Dowbor

Toda proposta de desenvolvimento envolve uma visão de conjunto, valores pelos quais medimos o que acontece na cidade e o que deveríamos alcançar. O traço fundamental que nos caracteriza é uma profunda desigualdade, de renda, de patrimônio, de oportunidades. Nenhum dos outros grandes objetivos, a viabilidade econômica e a sustentabilidade ambiental, se alcança sem focar a questão central da desigualdade. Em particular, não há como não ver a dimensão ética do desafio: a massa da população que mal sobrevive nesta cidade rica, não é responsável pela situação vergonhosa que enfrenta, nem pelos desmandos das administrações. São Paulo é uma cidade rica que subutiliza de maneira grotesca os seus potenciais. Organizar a inclusão das maiorias constitui o eixo central de uma economia de bom senso, que funcione em termos econômicos, sociais e ambientais. Além da racionalidade e do bom senso, trata-se fundamentalmente de uma questão de justiça.


As próximas eleições municipais se dão num contexto extremamente negativo. Desde que encerraram a fase distributiva e inclusiva, em 2014, é o sétimo ano de paralisia econômica e de caos político, com volta da fome, elevação da mortalidade infantil, destruição ambiental e uma economia que entra em 2020 com o nível de produção que regrediu, em termos reais, para 2012. Neste período de paralisia passamos de 74 bilionários com patrimônio de 346 bilhões de reais em 2012, para 206 bilionários com 1,2 trilhões de reais em 2019, essencialmente fortunas financeiras improdutivas, que aumentaram em ritmo de 20% ao ano. A economia está sendo sangrada, por meio de endividamento da população e das empresas produtivas e do próprio governo, além da evasão fiscal e do estoque de recursos em paraísos fiscais. Isso significa que a gestão municipal terá de buscar uma linha defensiva, de construção do bom senso e do desenvolvimento equilibrado como contraposição ao contexto nacional. Isso não é apenas negativo: numerosas cidades, como por exemplo Nova Iorque, enfrentam o populismo de direita ao construir espaços de racionalidade no nível local, buscando as oportunidades na crise.


Neste sentido, não se trata aqui de elencar todas as tarefas que temos pela frente, e que são amplamente conhecidas: expandir a educação, ampliar o acesso à saúde, racionalizar o sistema de transportes e assim por diante. Queremos aqui sugerir uma visão do desenvolvimento da cidade que perpassa todos os setores, pontos essenciais de referência para os diversos projetos que temos em mente.

1 – A dinâmica econômica: a lógica do desenvolvimento que funciona consiste em orientar os recursos para onde são mais necessários, na base da sociedade. A massa da população gasta o que recebe, enquanto os mais afortunados fazem aplicações financeiras que geram rendimentos, mas não geram nem produção nem emprego. Estimular a demanda na base dinamiza a produção de bens e serviços. Não provoca inflação pois as empresas estão trabalhando com menos de 70% da capacidade, e podem responder rapidamente com mais produtos. O aumento da capacidade de compra gera imposto sobre o consumo, e a dinamização produtiva gera imposto sobre os processos produtivos, e a conta fecha em termos dos recursos públicos colocados na dinamização. O equilíbrio fiscal não se consegue reduzindo os gastos, e sim aumentando as receitas. A economia que funciona, é a que se orienta para o bem-estar das maiorias. O empresariado produtivo não precisa de discursos ideológicos, precisa de capacidade de compra da população para ter para quem vender, e de crédito barato para ter como investir.


2 – O investimento público: A dinamização da base econômica gera recursos para a administração pública. Esta desempenha um papel importante em dois eixos principais: as políticas sociais e as infraestruturas. As políticas sociais, educação, saúde, segurança, habitação e semelhantes, não constituem gastos, e sim investimentos no bem-estar da população e na sua capacidade produtiva. Para a população, o SUS, a escola pública e políticas semelhantes são essenciais, e quando o acesso é assegurado de maneira pública, gratuita e universal, constituem um “salário indireto”, muito mais produtivo do que os sistemas privados, e liberam os recursos dos trabalhadores para compras. Por sua vez, o investimento público em infraestruturas, como transporte, energia, telecomunicações, saneamento e semelhantes tanto melhoram o bem-estar das famílias como a produtividade das empresas. O equilíbrio entre os bens de consumo individual essencialmente providos por empresas privadas, e os bens de consumo coletivo assegurados pelo setor público, é essencial. Aqui tampouco funcionam os discursos ideológicos contra o setor público. São contra-produtivos, e inúmeros exemplos mostram que para bens de consumo coletivo o acesso público é mais eficiente e produtivo. Paris re-municipalizou a administração da água, Hamburgo a administração da energia e assim por diante.


3 – A participação social: a adequação das iniciativas de desenvolvimento da cidade depende fortemente da presença da sociedade civil organizada. A presença política da população apenas na hora do voto, leva a que sejam apresentados elencos de possíveis realizações elaboradas por empresas de marketing político. Para que os recursos financeiros, tecnológicos e humanos da cidade sejam orientados para o que a cidade realmente precisa, é essencial a participação permanente de pressão organizada sobre a administração, inclusive como contrapeso aos interesses dos grupos econômicos. Isso funciona tanto para a eficiência das iniciativas, como para o controle da corrupção. Inúmeras experiências de gestão municipal pelo mundo afora mostram que a presença de formas organizadas de participação da sociedade civil é uma condição fundamental do funcionamento das políticas de desenvolvimento. Se a população não se organiza em torno aos seus interesses, as administrações seguirão os interesses politiqueiros e das corporações. A boa governança não resulta de discursos ideológicos, e sim do equilíbrio entre o mundo empresarial, o setor público e as organizações da sociedade civil, visando o bem-estar do conjunto.


4 – A base financeira: São Paulo é uma cidade rica. O seu PIB é da ordem de 700 bilhões de reais, o que representa 60 mil reais por ano e por habitante, equivalentes a 20 mil reais por mês por família de 4 pessoas. O que produzimos é amplamente suficiente para assegurar a todos uma vida digna e confortável. Muito mais do que um problema econômico, o nosso desafio é de organização política, ambiental e social. O principal desafio é que os nossos recursos são pessimamente distribuídos, e muito mal administrados. A Forbes de 2019 apresenta a concentração de bilionários no Estado de São Paulo, 82 famílias com uma fortuna de 384 bilhões. Os 67 bilionários que moram na cidade de São Paulo têm uma fortuna acumulada que representa, como ordem de grandeza, quatro vezes o orçamento total da cidade, que deve assegurar serviços para 12 milhões de habitantes. Usam a cidade, mas são isentos de impostos. O orçamento, da ordem de 60 bilhões, representa 5 mil reais por pessoa e por ano, o que em si representa um imenso potencial. E as poupanças das famílias e reservas financeiras das empresas, hoje depositadas em bancos e diversos intermediários financeiros, podem igualmente servir para financiar o desenvolvimento da cidade. A Califórnia acaba de autorizar a formação de bancos públicos municipais em todo o Estado, o que permite que as comunidades administrem de maneira direta os seus recursos. A redução da evasão fiscal, a reorientação dos recursos do orçamento para prioridades da base da população, a formação de um banco municipal e de finanças de proximidade, um IPTU progressivo e outras formas de resgate da utilidade dos nossos recursos é fundamental. O nosso problema não é a falta de recursos, é a sua má gestão.


5 – A base laboral: A subutilização da força de trabalho constitui um dos maiores absurdos, num país e numa cidade onde há tantas coisas por fazer e tanta gente “se virando” para sobreviver. O Brasil tem uma população ativa de 105 milhões, mas conta com apenas 33 milhões pessoas com emprego formal no setor privado, 31% do total. O setor informal representa 40 milhões de pessoas, somados ao desemprego aberto de 12 milhões temos 52 milhões de pessoas subutilizadas, a metade da população ativa. A subutilização da nossa força de trabalho representa um dos maiores absurdos neste país.Em termos de inclusão produtiva, os eixos de ação são claros: o apoio à pequena e média empresa, principal empregador no setor privado; a generalização da cobertura internet e apoio financeiro e técnico para que o empreendedorismo individual ou de grupos seja efetivo, e não um disfarce; a generalização de iniciativas locais, bairro por bairro, em particular nas periferias, de melhoria das condições de habitação; e a expansão de políticas sociais, como educação, saúde, cultura, esporte, segurança e outros, hoje empregadores mais importantes do que a indústria. Em outros termos, a existência de tantas coisas a fazer, e de tanta mão de obra parada, precisa ser transformada em oportunidades de transformação econômica e social. Em termos de organização, isso envolve iniciativas descentralizadas, com protagonismo das próprias comunidades. Há inúmeras iniciativas intensivas em mão de obra que esperam o pequeno apoio organizacional, técnico e financeiro que as viabilize. Mas o essencial mesmo é que cada um possa encontrar o seu lugar. Celso Furtado escreveu com razão que quando uma pessoa está fora do sistema produtivo, qualquer contribuição é lucro.


6 – A base científico-tecnológica: A profunda transformação científico-tecnológica da era atual precisa ser incorporada na estratégia de desenvolvimento da cidade. A rápida evolução para a economia do conhecimento, hoje principal fator de produção, aliada à conectividade generalizada, abre caminho para a rápida transformação de como trabalhamos. Como tantas cidades no mundo, precisamos desenvolver um plano municipal de banda larga. Não tem sentido o livre acesso ser assegurado apenas em aeroportos e alguns pontos mais, e a comunicações serem dominadas por um oligopólio que pelos preços praticados mais trava do que facilita. As ondas eletromagnéticas são da natureza, a cobrança de pedágios não faz sentido. Um adensamento radical das capacidades digitais deverá permitir a expansão da economia solidária, de fluxos monetários desintermediados, de pesquisas colaborativas interinstitucionais, de articulações internacionais. A inclusão digital, mas também o seu aproveitamento generalizado para o desenvolvimento de novas atividades econômicas, são essenciais. Assegurar o livre acesso ao sinal de qualidade no conjunto do território urbano é uma pré-condição para se assegurar a inclusão digital. Trata-se de iniciativa simples, barata, e de imenso impacto. E abre a possibilidade de fomentar atividades dos mais variados tipos, dinamizando a economia pela base. As centenas de faculdades e de centros de pesquisa da cidade podem colaborar para que o avanço científico-tecnológico deixe de existir apenas em ilhas de excelência.

7 - A base territorial: A gestão racional de uma cidade como São Paulo não é viável sem uma radical descentralização do seu processo decisório. Com seus 12 milhões de habitantes, mesmo com administrações regionais, que contam em média mais de 300 mil habitantes, e os distritos com cerca de 100 mil, e profundas diversidades econômicas, sociais e culturais, achar que encontraremos caminhos para o uso racional dos recursos, e adaptados às necessidades reais da população, a partir do gabinete do prefeito, não é realista. Inúmeros exemplos de administração de grandes cidades mostram que a eficiência no uso dos recursos está diretamente ligada à proximidade com os que conhecem as suas realidades, os principais interessados. Muitos bairros, inclusive, já tem uma forte identidade cultural, e um bairro na cidade de São Paulo constitui frequentemente tem uma massa populacional superior a tantas cidades que dispõem de administrações autônomas. Na outra dimensão territorial, particularmente em termos econômicos, somos um grande centro econômico cujo território é marcado pela grande cruz que desenham Campinas e Santos na vertical, e Sorocaba a São José dos Campos na horizontal, além da dimensão propriamente metropolitana. Aqui, São Paulo, como núcleo dominante, tem um papel importante a desempenhar, desenvolvendo capacidade de planejamento de complementariedades territoriais. Consórcios intermunicipais têm se demonstrado instrumentos poderosos de racionalização.


8 – O potencial cultural: Sempre vista como secundária no processo de desenvolvimento econômico e social, a cultura desempenha, no entanto, um papel chave na construção da coesão social, da identidade, do sentimento de pertencer a uma comunidade, da articulação de um território. No caso do gigantismo de São Paulo, com uma população maior do que a maioria dos países, há uma imensa diversidade de culturas que se cruzam. O que já foi chamado de São Paulo de Mil Povos, na realidade envolve uma riqueza de culturas como poucas cidades no mundo apresentam. Valorizar essas culturas, as suas festas, músicas, representações teatrais, modas, culinárias, organizando por exemplo uma semana de cada nacionalidade, de cada região, expandindo a riqueza das heranças presentes na cidade, constitui um processo de integração humana essencial. A cidade é um organismo vivo e criativo, com muita riqueza cultural abafada por um sistema de isolamento em condomínios, de divisão em áreas nobres e periféricas, de solidão em apartamentos, de ruas desertas. Apoiar e fomentar atividades culturais é inclusive essencial para essa juventude carente de espaços de sociabilidade, que busca expressão em raros momentos que explodem pela sua própria raridade. As próprias tecnologias permitem hoje democratizar a criatividade de tantos grupos espalhados pela cidade. A riqueza cultural constitui uma dimensão essencial da humanização dos espaços urbanos, e o desenvolvimento que se busca não se limita à dimensão. precisamos, inclusive, despertar os bairros-dormitório.


9 – A pobreza crítica: Sabemos hoje, por inúmeras experiências brasileiras e no exterior, que tirar as pessoas da pobreza crítica, da opressão, de formas degradantes de sobrevivência, representa custos extremamente limitados. O Bolsa Família que tirou dezenas de milhões da miséria custou menos de 0,5% do PIB. Ter fome, pessoas dormindo nas calçadas, pessoas vivendo sobre córregos contaminados, crianças e suas mães reduzidas a situações cruéis, numa cidade rica como São Paulo, não é só desumano como vergonhoso frente a toda esta riqueza espalhafatosa e ridícula. Em particular, no nível econômico, é simplesmente irracional, na medida em que fere profundamente a imagem de São Paulo para o mundo, torna-a muito menos atraente. A crueldade tem limites, e uma mãe não poder comprar um medicamento para um filho doente é uma indignidade. Trazer, para a discussão do que se vai fazer pela cidade de São Paulo, um sentimento de justiça, é fundamental. Tal como está, é uma vergonha para todos nós, e fator de rechaço para o resto do mundo. Não é questão de esquerda ou direita, é uma questão de decência humana. Medidas simples irão contribuir muito para criar um clima de solidariedade urbana. E em termos de atratividade econômica da cidade, sim, é uma das políticas de melhores resultados de custo-benefício.


10 – O desenvolvimento sustentável: A transformação mais significativa no conceito de desenvolvimento, discutida hoje em todo o planeta, é a rejeição crescente da visão simplista de que basta liberar as forças do mercado, que o “trickling down”, literalmente gotejamento, irá assegurar o bem-estar de todos. A Agenda-2030, aprovada no Brasil e vinculante em termos legais, apresenta 17 grandes objetivos, detalhados em 169 metas: o desenvolvimento deixa de ser visto como resultado indireto de comportamentos econômicos, e passa a se organizar em torno a quatro pilares: viabilidade econômica, redução das desigualdades, proteção do meio ambiente, geridos dentro de um marco institucional justo e democrático. A sustentabilidade deixa de ser vista apenas como referente ao “verde”, à natureza. Refere-se ao resultado sistêmico que buscamos alcançar. O “norte” assim definido, de uma sociedade economicamente viável, socialmente justa, ambientalmente sustentável, e construída por meio de processos democráticos, por amplo que seja, constitui um imenso avanço. Frente aos retrocessos atuais, constitui inclusive uma linha de defesa. O que temos de desenvolver, é um grande esforço pedagógico para o resgate do bom senso, materializando inclusive os pontos aqui levantados em propostas de políticas setoriais. Temos de apresentar para a cidade uma visão de justiça e solidariedade.

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